Vou
aproveitar a mensagem do Rafa na lista de discussão do Cineclube Darcy Ribeiro e
sua manifestação de estranheza quanto a um evento que tem cara de atividade
cineclubista, mas não é, para resumir algumas ideias sobre nossa atividade e
nossos interesses.
A programação
“Em cena — ‘As aventuras de Pi’” da Associação Palas Athena, de fato, é um “curso”
pago que só acontecerá em determinado dia do mês de abril. Aos interessados recomenda-se
assistir o filme antes da “discussão e abordagem” proporcionada por um “especialista”.
Com isso, a duração do evento se reduz para 2h (o filme tem 2h 7min de
duração). Isso não é atividade cineclubista.
Cineclube,
para resumir, é a forma coletiva e democrática de organização associativa do
público consciente em torno da obra de arte cinematográfica. O que distingue um
cineclube de outras formas de organização?
Definição histórica
Há uma
definição de cineclube que foi desenvolvida ao longo de 100 anos no mundo
inteiro e, no Brasil, chegou a ser reconhecida, graças às gestões da
organização cineclubista nacional, pela Instrução Normativa nº 63, de 2 de
outubro de 2007, da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Segundo essa
definição, o cineclube é uma associação de pessoas democraticamente dirigida,
sem fins lucrativos e com um compromisso ético e estético com a arte
cinematográfica, em particular com o cinema nacional. Entre nós, essa
configuração é regida pela última versão do Código Civil Brasileiro.
Então, o
cineclube é uma associação de pessoas democraticamente dirigida. Isso
significa, em primeiro lugar, que entidades, ainda que representadas por pessoas,
não devem fazer parte do cineclube. Não teria sentido incluir como associados
de um cineclube empresas (produtoras, distribuidoras, exibidoras ou
conservadoras de filmes, por exemplo), públicas ou privadas. “Democraticamente
dirigida” significa ter um projeto continuado de atividades debatido por todos e
deliberado pela maioria dos associados (em assembleia geral), um grupo de
associados (que pode ser denominado “comissão diretora”, como preveem, por
exemplo, os estatutos do Cineclube Darcy Ribeiro aprovados pela sua assembleia
de fundação realizada em 28 de outubro de 2005) encarregado de pôr em prática
esse projeto e outro grupo (“conselho fiscal”, no Cineclube Darcy Ribeiro) encarregado
de fiscalizar as atividades do primeiro; esses associados com funções
específicas devem ter mandato e condições de recondução ao cargo estatutariamente
fixados. Não estamos falando, é óbvio, dos participantes de um “curso” que dura
apenas duas horas.
No ambiente do
legítimo cineclubismo, denominamos a construção de uma estrutura como essa de “organizar
o público”, pois os associados dos cineclubes constituem a parte mais consciente,
criativa e crítica dos espectadores de cinema. Isso é diferente de “formação de
público” ou “formação de plateias”, em que grupos desorganizados de
espectadores são condicionados a presenciar de maneira bem comportada, alienada
e inconsequente a programas definidos por “curadorias” autorizadas e dirigistas,
mas sempre alheias à comunidade cineclubista. Por isso, os autênticos cineclubes
podem reclamar o papel social de representantes do público de cinema e fazer
valer a Carta dos Direitos do Público aprovada pela Federação Internacional de
Cineclubes em 18 de setembro de 1987.
Sustentabilidade
“Sem fins
lucrativos”, como todos sabem, significa que na entidade não pode haver
apropriação individual de eventuais excedentes dos recursos obtidos pelos meios
estatutariamente fixados, depois de abatidas as despesas. Isso não quer dizer
que o cineclube é uma ilha de gratuidade em meio a um oceano de atividades
econômicas, muitas das quais dirigidas com o objetivo exclusivo de auferir lucros.
O funcionamento continuado de qualquer cineclube sempre acarreta mais ou menos gastos,
com equipamentos e/ou sua manutenção, materiais de consumo, locações, etc.
A
prática centenária do cineclubismo mostra que, para preservar a independência
da estrutura cineclubista associativa e democrática, é importante que os
associados assumam coletivamente esses encargos (por meio do pagamento de
mensalidades, taxas de manutenção ou outras formas de contribuição voluntária)
ou a obtenção de recursos junto a patrocinadores, parceiros, etc. Nessas
condições, práticas alienantes e alienadas como “crowdfunding” nada acrescentam,
muito pelo contrário, à prática cineclubista; a adesão dos cineclubes ao
sistema de “vale cultura” — que diz respeito às relações entre patrões e
empregados, de um lado, e ao financiamento oficial à produção e à distribuição artística,
por outro — deve ser objeto de amplos debates e reflexões.
O debate indefectível
Finalmente, o
compromisso ético e estético com o cinema, especialmente o nacional, envolve atitudes,
escolhas e manifestações coletivas. A primeira delas é o indispensável debate
após a exibição dos filmes (que deve ser feita para todos, ao mesmo tempo e no
mesmo local, para que de fato possa ser considerada uma experiência coletiva).
O indefectível debate — livre, aberto, sobre todos os temas que o filme possa ter suscitado, com a participação de todos — é a marca característica da atividade cineclubista. (Obviamente,
há outras tarefas encontradiças nos cineclubes: redação e divulgação de textos
— resenhas, fichas técnicas, críticas mais ou menos especializadas, etc. —, mostras,
seminários, encontros, participação em entidades representativas, realização cinematográfica
e, hoje, videográfica, etc.)
Mas o fato de discutir um filme em grupo e em dada
ocasião não configura cineclube ou atividade cineclubista. Não existe “sessão cineclubista”
isolada no tempo e no espaço. Nem “realização de um cineclube” em meio a outras
atividades, numa comemoração qualquer. (Frank Ferreira)
Um comentário:
Vale-cultura: melhor os cineclubistas estarem preparados paa ele
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