21 de fevereiro de 2013

Sobre “Febre do rato”, de Cláudio Assis: a economia política do erotismo


“Até a anarquia precisa de tradição!”

No seu terceiro longa-metragem, Cláudio Assis consegue equilibrada combinação de recursos cinematográficos e referências narrativas

Para se institucionalizar, a teatral anarquia do comportamento do protagonista Zizo deve aderir à tradição, em busca do fôlego vital, debatendo-se como os ratos que mal conseguem sobrenadar nas águas nos esgotos.
Além de escolher seu alvo preferencial (que é a sociedade burguesa simbolizada pelos edifícios que desenham o skyline da cidade de Recife vista dos rios que a cortam), Zizo precisa calcular o momento politicamente mais incorreto, de modo a ser mais eficaz, para lançar, no rosto do inimigo de classe, seu lúmpen-manifesto, seu discurso condenatório, quase profético. No dia da comemoração mais importante da mais importante das instituições — respectivamente, o Sete de Setembro e a Pátria, com “P” maiúsculo —, o poeta destrambelhado e seu rarefeito grupo de admiradores se livram do pouco que ainda os liga a uma sociedade da qual voluntariamente se colocam á margem.
A Pátria é simbolizada pela violência e pelas fardas de soldados e policiais, em contraste com as roupas paisanas, reduzidas e andrajosas da maior parte dos personagens. Em contraste também com os trajes que Eneida (a amada de Zizo, a Dulcineia inalcançável desse Dom Quixote recifense) usa não de forma marcial, mas para realçar as formas corporais que tanto despertam em Zizo a paixão carnal.
É o clímax do filme — que poderia ter como subtítulo “Vida, obra, paixão e morte do poeta torto Zizo”.

Referências recifenses


Uma das melhores características de Febre do rato é a riqueza de referências e citações.
Uma referência cinematográfica muito evidente é A margem (1967), de Ozualdo Candeias, um dos filmes mais lembrados quando se fala do ciclo do “cinema marginal” paulistano. Junto a um rio Tietê menos poluído que hoje e com a cidade de São Paulo no horizonte cinzento, a câmera inquieta de Candeias passeia sobre um grupo de homens e mulheres que tentam inutilmente compartilhar sua marginalidade, seu não convencionalismo, seu desejo sexual e sua indigência.
Outras referências estão mais diretamente ligadas a Recife, o cenário do filme de Claudio Assis.
Os versos e a oratória escandalosa de Zizo são evidentemente inspirados na vida e na obra do poeta Augusto dos Anjos (1884-1914), paraibano que se formou em Direito no Recife. Foi autor de uma poesia personalíssima, erudita, pessimista, escatológica, que escandalizou e seduziu na sua época (ver, por exemplo, aqui).
Zizo também fala de Josué de Castro (1908-1973), sociólogo e médico recifense, autor dos clássicos Geografia da fome (1946), Geopolítica da fome (1951) e Sete palmos de terra e um caixão (1965). Deputado federal, foi cassado pelo golpe militar de 1964 e, exilado, presidiu o Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO). No filme, Zizo resume o “ciclo do caranguejo” descrito por Castro, um circuito alimentar que reúne humanos e crustáceos em mútua degustação nos mangues poluídos de Recife.
Pernambucano de Olinda, o compositor Chico Science (1988-1997) também inspira Zizo e foi inspirado por Josué de Castro, ao criar o movimento Mangue Beat, montar sua banda Nação Zumbi e gravar, em 1994, Da lama ao caos.

A economia política do erotismo


A sempre excepcional fotografia em p&b de Walter Carvalho é o recurso visual adequado à urgência de respostas que a poesia de Zizo exprime.
As perspectivas inusitadas, às vezes a pino sobre a ação, mostram/escondem corpos sensualmente modelados pela luz dura e tropical, constroem espaços amplos, que intensificam a solidão, ou reduzidíssimos, que potencializam a angústia. Tudo, em seguida, combina-se por meio da montagem opaca que não confunde com o ilusionismo fácil e vertiginoso da comédia inspirada nas produções de veiculação televisiva. Pelo contrário: a suavidade cênica e a fluidez de movimentação, no tratamento dado a certas passagens de crueza quase pornográfica, permitem ao espectador uma fruição poeticamente erótica, porque criativa e, ao mesmo tempo, abertas a múltiplas leituras e interpretações. Essa economia política da imagem se repete/se revela na colagem de planos/folhas xerocadas do corpo de Eneida que Zizo reúne como outros tantos versos para erigir o corpo fantasmático de sua amada.
No entanto, quem é o interlocutor da poesia de Zizo? A quem ele interpela, nas ruas sujas, nos quintais pobres e nos porões entulhados que frequenta, com sua corte de marginalizados? Quem ouve, com ele, a cacofonia de ruídos orgânicos e maquinais que sonorizam as pausas e as correrias de Zizo?
Com a palavra, o espectador.
(Frank Ferreira)


FEBRE DO RATO (Cláudio Assis, 2011, Brasil, 110 min)
Direção: Cláudio Assis. Roteiro: Hilton Lacerda. Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Karen Harley. Música: Jorge du Peixe. Elenco: Irandhir Santos, Nanda Costa, Matheus Nachtergaele, Juliano Cazarré, Conceição Camaroti, Maria Gladys, Angela Leal, Mariana Nunes, Victor Araújo, Hugo Gila, Tânia Granussi e outros

DATA: Sábado, 23 de fevereiro de 2013
HORA: 14:00h
LOCAL: R. General Jardim, 522, sala Florestan Fernandes

17 de fevereiro de 2013

Nossa próxima atração: "Febre do rato", em 23/2/2013


"Até a anarquia precisa de tradição!"

"FEBRE DO RATO é, sem dúvida, o mais belo filme de Assis. Extremamente poético, usa os versos de seu roteirista Hilton Lacerda e transpira poesia nos quadros cuidadosamente fotografados em preto e branco por Walter Carvalho. O elenco é primoroso, encabeçado por um inspiradíssimo Irandhir Santos, que assume a alma de o filme e dá um show de interpretação, permanecendo com os espectadores muito tempo depois do filme ser visto" (Cecília Barroso, no site "Cenas de cinema", em 24 de junho de 2012).

FEBRE DO RATO (Cláudio Assis, 2011, Brasil, 110 min)
Direção: Cláudio Assis. Roteiro: Hilton Lacerda. Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Karen Harley. Música: Jorge du Peixe. Elenco: Irandhir Santos, Nanda Costa, Matheus Nachtergaele, Juliano Cazarré, Conceição Camaroti, Maria Gladys, Angela Leal, Mariana Nunes, Victor Araújo, Hugo Gila, Tânia Granussi e outros

DATA: Sábado, 23 de fevereiro de 2013
HORA: 14:00h
LOCAL: R. General Jardim, 522, sala Florestan Fernandes

16 de fevereiro de 2013

Programação primeiro semestre de 2013!

Sempre às 14:00h


PRÓXIMA SEMANA: 23 de fevereiro: A FEBRE DO RATO (Cláudio Assis, 2011, Brasil, 110 min, p&b)
O poeta Zizo, possuído pela “febre do rato”, percorre as ruas de uma Recife nada turística, no expressivo filme roteirizado por Hilton Lacerda e fotografado por Walter Carvalho.

9 de março: HOLY MOTORS ("Holy motors", Leos Carax, 2012, França/Alemanha, 115 min, cor)
O mesmo ator faz onze diferentes personagens, homens e mulheres, ao longo de um único dia e a bordo de uma limusine que as leva de uma situação a outra, percorrendo sem cessar uma Paris magicamente cinematografada.

23 de março: CRASH, ESTRANHOS PRAZERES ("Crash", David Cronenberg, 1996, Canadá/Reino Unido, 100 min, cor)
Personagens em transe, desesperadamente fascinados pela conexão entre o prazer do erotismo e a dor infligida por acidentes automobilísticos. Debatedor já convidado, prof. dr. Luiz Augusto Contador Borges.

6 de abril: BAGATELA (Clara Ramos, 2008, Brasil, 53 min, cor)
A diretora Clara Ramos investiga as consequências de punições excessivas para crimes de menor importância. Debatedores já convidados, Clara Ramos e o prof. dr. Marcos Florindo.

20 de abril: FESTA DE FAMÍLIA ("Festen", Thomas Vinterberg, 1998, Dinamarca/Suécia, 105 min, cor)
Na comemoração dos 60 anos de Helge, diante de três filhos e numerosos convidados, os dolorosos segredos da corrupção familiar são revelados. Um filme do coletivo Dogma 95.


4 de maio: BARRAVENTO (Glauber Rocha, 1962, Brasil, 78 min, p&b)
O primeiro longa-metragem de Glauber Rocha. Embora datado e produzido em condições muito adversas, é um belo e digno estudo sobre a exploração dos trabalhadores na pesca praieira e do papel da religião, em particular a de matriz africana, nas condições de alienação dos pescadores.

18 de maio: JULIETA DOS ESPÍRITOS ("Giulietta degli espiriti", Federico Fellini, 1965, Itália/França, 137 min, cor)
Um dos mais conhecidos e mais poéticos filmes do diretor italiano, o primeiro em que usou película colorida. Nesta explosão de criatividade cinematográfica, Fellini abandona o cada vez mais débil realismo de suas obras anteriores e, por via da personagem-título, ajusta contas com suas fantasias e seu misticismo.


1º de junho: A LÍNGUA DAS MARIPOSAS ("La lengua de las mariposas", José Luis Cuerda, 1999, Espanha, 96 min, cor)
As primeiras relações afetivas de uma criança em idade escolar, no cenário dos primórdios da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Debatedora já convidada: profª drª Eliana Asche.

15 de junho: SONATA DE OUTONO ("Höstsonaten", Ingmar Bergman, 1978, França/RFA/Suécia, 99 min, cor)
A carreira como pianista de fama internacional afastara Charlotte das filhas Eva e Helena. No reencontro das três, aos poucos, a natureza conflituosa de sua relação vem à tona, em um ambiente de angústia, ressentimento e frustração.

29 de junho: O SUBSTITUTO ("Detachment", Tony Kaye, 2011, EUA, 97 min)
A composição comovente e realista desta crônica sobre o cotidiano de um professor substituto se apoia na vida de três gerações de pessoas que não encontram seu lugar definitivo na sociedade atual. Debatedor já convidado: prof. Ricardo Streich,