“Até a anarquia precisa de tradição!”
No seu terceiro
longa-metragem, Cláudio Assis consegue equilibrada combinação de recursos
cinematográficos e referências narrativas
Para se
institucionalizar, a teatral anarquia do comportamento do protagonista Zizo deve
aderir à tradição, em busca do fôlego vital, debatendo-se como os ratos que mal
conseguem sobrenadar nas águas nos esgotos.
Além de escolher seu
alvo preferencial (que é a sociedade burguesa simbolizada pelos edifícios que desenham
o skyline da cidade de Recife vista
dos rios que a cortam), Zizo precisa calcular o momento politicamente mais
incorreto, de modo a ser mais eficaz, para lançar, no rosto do inimigo de classe,
seu lúmpen-manifesto, seu discurso condenatório, quase profético. No dia da
comemoração mais importante da mais importante das instituições — respectivamente,
o Sete de Setembro e a Pátria, com “P” maiúsculo —, o poeta destrambelhado e
seu rarefeito grupo de admiradores se livram do pouco que ainda os liga a uma
sociedade da qual voluntariamente se colocam á margem.
A Pátria é simbolizada
pela violência e pelas fardas de soldados e policiais, em contraste com as
roupas paisanas, reduzidas e andrajosas da maior parte dos personagens. Em
contraste também com os trajes que Eneida (a amada de Zizo, a
Dulcineia inalcançável desse Dom Quixote recifense) usa não de forma marcial,
mas para realçar as formas corporais que tanto despertam em Zizo a paixão
carnal.
É o clímax do filme —
que poderia ter como subtítulo “Vida, obra, paixão e morte do poeta torto Zizo”.
Referências recifenses
Uma das melhores
características de Febre do rato é a riqueza de referências e citações.
Uma referência
cinematográfica muito evidente é A margem (1967), de Ozualdo Candeias, um dos
filmes mais lembrados quando se fala do ciclo do “cinema marginal” paulistano. Junto
a um rio Tietê menos poluído que hoje e com a cidade de São Paulo no horizonte
cinzento, a câmera inquieta de Candeias passeia sobre um grupo de homens e
mulheres que tentam inutilmente compartilhar sua marginalidade, seu não
convencionalismo, seu desejo sexual e sua indigência.
Outras referências
estão mais diretamente ligadas a Recife, o cenário do filme de Claudio Assis.
Os versos e a oratória
escandalosa de Zizo são evidentemente inspirados na vida e na obra do poeta
Augusto dos Anjos (1884-1914), paraibano que se formou em Direito no Recife. Foi
autor de uma poesia personalíssima, erudita, pessimista, escatológica, que
escandalizou e seduziu na sua época (ver, por exemplo, aqui).
Zizo também fala de
Josué de Castro (1908-1973), sociólogo e médico recifense, autor dos clássicos Geografia
da fome (1946), Geopolítica da fome (1951) e Sete palmos de terra e um
caixão (1965). Deputado federal, foi cassado pelo golpe militar de 1964 e, exilado,
presidiu o Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO). No
filme, Zizo resume o “ciclo do caranguejo” descrito por Castro, um circuito
alimentar que reúne humanos e crustáceos em mútua degustação nos mangues poluídos
de Recife.
Pernambucano de
Olinda, o compositor Chico Science (1988-1997) também inspira Zizo e foi inspirado por Josué
de Castro, ao criar o movimento Mangue Beat, montar sua banda Nação Zumbi e gravar, em 1994, Da lama ao caos.
A economia política do erotismo
A sempre excepcional
fotografia em p&b de Walter Carvalho é o recurso visual adequado à urgência
de respostas que a poesia de Zizo exprime.
As perspectivas
inusitadas, às vezes a pino sobre a ação, mostram/escondem corpos sensualmente
modelados pela luz dura e tropical, constroem espaços amplos, que intensificam
a solidão, ou reduzidíssimos, que potencializam a angústia. Tudo, em seguida,
combina-se por meio da montagem opaca que não confunde com o ilusionismo fácil e
vertiginoso da comédia inspirada nas produções de veiculação televisiva. Pelo
contrário: a suavidade cênica e a fluidez de movimentação, no tratamento dado a
certas passagens de crueza quase pornográfica, permitem ao espectador uma
fruição poeticamente erótica, porque criativa e, ao mesmo tempo, abertas a múltiplas
leituras e interpretações. Essa economia política da imagem se repete/se revela
na colagem de planos/folhas xerocadas do corpo de Eneida que Zizo reúne como
outros tantos versos para erigir o corpo fantasmático de sua amada.
No entanto, quem é o
interlocutor da poesia de Zizo? A quem ele interpela, nas ruas sujas, nos
quintais pobres e nos porões entulhados que frequenta, com sua corte de
marginalizados? Quem ouve, com ele, a cacofonia de ruídos orgânicos e maquinais
que sonorizam as pausas e as correrias de Zizo?
Com a palavra, o
espectador.
(Frank Ferreira)
FEBRE DO RATO (Cláudio Assis, 2011, Brasil, 110 min)
Direção: Cláudio Assis. Roteiro: Hilton Lacerda. Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Karen Harley. Música: Jorge du Peixe. Elenco: Irandhir Santos, Nanda Costa, Matheus Nachtergaele, Juliano Cazarré, Conceição Camaroti, Maria Gladys, Angela Leal, Mariana Nunes, Victor Araújo, Hugo Gila, Tânia Granussi e outros
DATA: Sábado, 23 de fevereiro de 2013
HORA: 14:00h
LOCAL: R. General Jardim, 522, sala Florestan Fernandes
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