2 de janeiro de 2013

Texto de Felipe Macedo sobre o centenário do cineclubismo em 2013


2013 — Centenário do Cineclubismo
"Divertir, Instruir, Emancipar"


Uma tradição elitista

Até bem recentemente se costumava localizar o início da história do cineclubismo nos anos 20, mais precisamente em 1920 mesmo, com o surgimento das sessões do Journal du Ciné-club, organizadas por Louis Delluc e, quase simultaneamente, com a fundação do CASA, Clube dos Amigos da Sétima Arte, de Riciotto Canudo, ambos em Paris.
Os trabalhos de autores como Fabio Masala, Filippo de Sanctis e eu mesmo, nos anos 70, colocando o público no centro da questão cineclubista, lançaram as primeiras dúvidas que viriam a abalar essa historiografia. Textos dos Estudos Culturais ingleses, especialmente de Raymond Williams, baseados na teoria da hegemonia de Antonio Gramsci, mostraram também o processo ideológico de apropriação conceitual que ocorre com idéias e práticas originalmente populares. Noel Burch, com seu Da beleza das latrinas,[1] e mais recentemente ainda uma crítica da cinefilia elitista — Cinéfilos e cinefilias —[2] trouxeram especificamente para o campo do cinema e do cineclubismo um esclarecimento mais definitivo de como nossa história foi apropriada durante décadas por uma concepção elitista que só consegue ver cultura e criação onde for capaz de reconhecer uma personalidade especial, um autor. Ou mais, onde essa autoria se exprime de forma tradicionalmente culta, isto é, literária, especializada, e avalizada pelo ambiente artístico e cultivado do momento e/ou de uma posteridade igualmente "informada".
Durante muito tempo o cineclubismo foi identificado — muitas vezes de forma automática, acrítica — com uma concepção de cineclube de elite, animado por connaisseurs, liderados por (e reconhecidos através de) uma grande personalidade, e capazes de produzir uma leitura — na verdade, uma escritura — crítica expressa em termos considerados cultos para o contexto em que se inseriam ou para a avaliação posterior igualmente elitista. Dessa forma, práticas já consolidadas nos meios mais populares só foram reconhecidas quando se associaram a figuras como Delluc ou Canudo, caciques dos salões parisienses de sua época. Principalmente interessado em fidelizar o público leitor de suas revistas — Journal du Ciné-club, depois Cinéa — Delluc promovia sessões de gala com filmes e conferências, repaginando — como se diz hoje em dia — para as elites da capital francesa atividades que os clubes populares já praticavam há um bom tempo. Canudo promovia memoráveis ceias elegantes para debater e valorizar o cinema como arte.
Certamente essas atividades mais chiques também se inscrevem no grande plano geral do cineclubismo; as bem conhecidas personalidades do meio artístico de Paris contribuíram, e muito, para o reconhecimento e a disseminação dos clubes de cinema não apenas naquela cidade, mas também nas grandes capitais de todo o mundo, inclusive na América Latina. Mas não constituem as primeiras experiências cineclubistas, não fundam a história deste nosso movimento. Os anos vinte, tal como se dera um pouco antes com o próprio fenômeno cinematográfico, podem ser considerados como o momento de institucionalização do cineclubismo, quando os elementos de um certo protocolo cinéfilo (Gauthier, 1999) se consolidam justamente numa concepção "culta" e elitista de cineclube.

História do cineclubismo

O mito do cineclube exclusivo do cinéfilo e/ou fanático, contudo, tomou raízes e se propagou por todo o mundo. Quando, 50 anos depois, os primeiros textos avançaram a tese do cineclubismo como organização do público, mal sabiam seus autores que apenas retomavam o projeto que dera origem às primeiras práticas cineclubes e que orientou os primeiros cineclubes. Não existia ainda uma pesquisa histórica sistemática sobre cineclube e organização do público, que é projeto para este século.
Em breves traços: as origens mais distantes do cineclubismo se confundem com outras formas de organização popular: iniciativas autônomas de ajuda mútua, educação, diversão e organização política. De fato, sindicatos, partidos políticos, cineclubes e um sem-número de associações populares têm todos uma origem comum. E também, em grande medida, o espetáculo moderno, que se moldou nessas formas de associação. A conjunção e evolução dessas formas é tema para outros textos mas, simplificando, lembramos que ao longo do século XIX constituíram-se nos meios populares diversos tipos de clubes, voltados simultaneamente para a diversão, o desenvolvimento cultural, a ajuda mútua e a organização política. Neles, frequentemente em torno de uma boa cerveja, os associados, a comunidade, cantava, declamava, debatia, estudava e conspirava pela sua emancipação. Numa outra vertente, igrejas e reformadores morais de todo tipo também empregavam esse recurso para "formar" ou educar para um certo tipo de cidadania. Nas conferências e debates que se promovia nessas organizações utilizavam-se bastante as lanternas mágicas como elemento de ilustração. Com o surgimento do cinematógrafo, ele foi rapidamente incorporado a essas práticas: existem manifestações documentadas, animadas com projeções, pelo menos desde 1898.
Mas é com a institucionalização do cinema — tal como a compreende a historiografia contemporânea –, processo que se inicia com a proliferação das salas fixas a partir de 1905, que irá emergir a forma cineclube, como instrumento de resistência ao modelo de cinema opressor que se desenvolvia. O processo ocorre em todo o mundo, mas talvez de forma mais evidente nos EUA, onde se pode ver mais claramente a relação que se estabelece entre um cinema que vai se definindo como negócio e um novo tipo de público que se forma, mediados por uma linguagem que gradualmente se consolida.
O formato nickelodeon — salas que apresentavam programas sucessivos a preços populares –, surgido no final de 1905, logo se implanta aos milhares. Em 1910, um terço da população estadunidense ia ao cinema uma vez por semana (em 1920, a metade do país); esse público em formação incorporava a mulher e a criança que, na era moderna, partilhavam pela primeira vez o espaço público. Inicialmente visto como vulgar e mesmo perigoso (o ambiente escuro e promíscuo das salas localizadas, em sua maioria, em áreas proletárias) pelos segmentos sociais mais abastados, a massa de cinéfilos era constituída basicamente pela classe operária e pelos enormes contingentes de imigrantes que a vinham ampliar, nesse período de intensa industrialização. O ambiente era animado, muitos se conheciam — muitas das salas ficavam nos bairros mesmo desse público que é o avô do nosso moderno proletariado audiovisual —, ou pelo menos se identificavam, se reconheciam como comunidade, como classe. Todo mundo falava, comentava, cantavam juntos em certas passagens, acompanhados pelo menos por um pianista; frequentemente um narrador ou explicador apresentava ou acompanhava toda a história dos filmezinhos de poucos minutos que compunham um programa também bastante breve. Os temas de sucesso eram populares, tirados da experiência de vida e hábitos culturais daquele público e que lhe podiam interessar. Mas nem a produção nem as salas estavam nas mãos do público.
O cinema que os industriais (foi o capital gerado pelo sucesso da exibição popular que permitiu o estabelecimento dos grandes estúdios e a monopolização mundial da produção e da distribuição) queriam construir não era o mesmo que interessava àquela grande massa popular. O tratamento dos enredos populares era dado a partir do ponto de vista de outra classe social. E o espaço público dos cinemas foi, inicialmente e durante cerca de dez anos, um terreno de conflito, um campo de ferrenha luta de classes. O público se revoltava quando uma greve, por exemplo, feita ali na sua cidade mesmo, era mostrada como uma perfídia de criminosos. Ou quando um personagem de imigrante era tratado como estúpido ou mau caráter. Ria dos poderosos apresentados como generosos e paternais. Comentava, vaiava, assobiava. Saía da sala e às vezes até quebrava umas instalações. Não estava distante perceber que tinha que ter suas próprias salas para ter "seu" cinema.
Do outro lado, o capital tomava medidas para controlar essa massa: surgem as primeiras formas de censura, moral e política; um corpo policial é criado nas salas para conter o público — os ushers são os primeiros "lanterninhas", cuja verdadeira origem é essa, de repressão. Deslocam-se as salas para regiões das cidades de menor concentração operária ou imigrante e o ingresso é gradualmente aumentado, procurando atrair setores da classe média.
Muito simplificadamente, ao final desse longo enfrentamento resulta a formação do que Siegfried Kracauer[3] chamou de público cosmopolita: uma massa sem identidade, silente, controlada e domesticada sob as regras do negócio, objeto — e não sujeito — de um cinema que se quer apenas entretenimento, com uma linguagem linear, literária, transparente e censurada. Um público consumidor. Formado por espectadores.
Mas havia outra vertente: um público que se organizava. Vendo que cada vez mais o cinema se distanciava de seus interesses, de seus gostos, de sua cultura mesmo, diversos grupos tomaram variadas iniciativas. Alugavam-se salas para garantir a exibição de certos filmes boicotados pelo comércio; Steve Ross (1999) aponta produções de grupos sindicais e políticos desde 1908. Tanto na França como nos EUA há referências a atividades sistemáticas de exibição no final da primeira década do século XX. Em boa parte da Europa — como também no Brasil — a igreja católica estimula ou promove diretamente práticas com cinema dissociadas do comércio capitalista, visto por ela como tão nocivo como o socialismo, seu maior inimigo. Na América do Norte esse papel era desempenhado pelas denominações protestantes. A existência de uma rede não comercial de exibições desde o final da primeira década parece ser comprovada pela criação de uma distribuidora de filmes, em 1912, pela organização patronal YMCA (Associação Cristã de Moços): iniciativa voltada tanto para alimentar um circuito cristão como para se contrapor à poderosa influência anarquista, socialista e feminista nos meios sindicais e populares. Em 1911, o jornal L.A. Citizen traz uma breve entrevista com um dos dirigentes de um "cinema socialista", que diz textualmente: "nossa sala é o resultado da rebelião do público contra o que lhe é imposto".
No Brasil, ainda que as pesquisas sejam relativamente poucas, o mesmo caldo de cultura está presente: organizações, jornais, clubes, círculos, ateneus anarquistas e grupos socialistas existem em grande número desde o final do século XIX. As escolas modernas, inspiradas nas teorias do educador anarquista catalão Francisco Ferrer (fuzilado em 1909), espalham-se por vários estados, empregando diversos recursos para ilustrar seus cursos — mas há ainda que se demonstrar o uso do cinema nessas práticas. Também os católicos imitam os franceses e criam por aqui a Boa Imprensa, organização que defende e promove o "bom cinema" e logo terá algumas salas em diferentes estados brasileiros.[4]

O primeiro cineclube

Se são características dos cineclubes justamente o associativismo, o construir coletivo, um certo anonimato — no sentido de inexistência de próceres cultuados - que em grande medida disso decorre, tanto mais difícil é estabelecer uma periodização rigorosa, uma data para um mítico "primeiro cineclube". Mas a História, a memória, a identidade e mesmo a política se assentam também em datas e símbolos que ajudam a construir um patrimônio coletivo a ser compartilhado. Assim, mesmo correndo o risco — de resto benfazejo — de que se comprovem outras iniciativas, parece que a primeira organização do público estruturada como um cineclube (associação democrática sem fins lucrativos e com o projeto de, através do cinema, garantir ao público acesso e participação na construção de um cinema que o representasse) e devidamente comprovada documentalmente é o Cinema do Povo, cooperativa de inspiração anarquista criada em Paris em 1913.
O programa do cineclube foi publicado no jornal Libertaire de 13 de setembro de 1913, e os estatutos da entidade registrados em cartório em 28 de outubro do mesmo ano. Entre os objetivos definidos estatutariamente estavam: "produção, reprodução, venda e locação de filmes", bem como "propaganda e educação através de apresentações artísticas teatrais, conferências, etc." Mais adiante, os estatutos precisavam: "A sociedade se esforçará para elevar a intelectualidade do povo." Os cartazes dos filmes produzidos e apresentados pelo cineclube nos meses seguintes traziam uma espécie de mote ou lema que resume brilhantemente esse ambicioso programa e que guarda total atualidade depois de cem anos, podendo muito bem servir de orientação para os cineclubes contemporâneos: "Divertir, instruir, emancipar."
Outro aspecto que valoriza esse primeiro cineclube é a repercussão que a iniciativa alcançou em várias partes do mundo. Ao que parece, outros cinemas do povo foram criados. No Brasil, a notícia chegou através do militante português Neno Vasco que, expulso daqui pela polícia, escrevia de Portugal para o jornal A Lanterna, de São Paulo, relatando as atividades do cineclube libertário parisiense. Em seu número de 8 de maio de 1914, A Lanterna publicou uma convocação para uma reunião no salão da Lega della Democrazia, na Rua Bonifácio 39, 12º andar, com o objetivo de fundar "uma sociedade cujo objetivo será a propaganda social através do cinematógrafo".[5] Não existe, no entanto, comprovação de que tal sociedade tenha sido realmente fundada — o que poderia nos levar a comemorar o centenário do cineclubismo brasileiro no ano que vem...
Como muitos dos cineclubes que marcam a história do nosso movimento, o Cinema do Povo teve curta duração: além da mobilização para a primeira Grande Guerra, o conflito foi precedido por uma forte perseguição aos movimentos contestadores e pacifistas. A última sessão do cineclube deve ter sido a de 30 de maio de 1914.[6]

Centenário de cineclubismo

O movimento cineclubista vive um momento muito especial em sua história. Tendo criado uma forma institucional e organizativa que lhe é exclusiva, conseguiu mantê-la até essa marca extraordinária de cem anos. Sua força — e igualmente muitas de suas fraquezas — derivam das características que já mencionamos: o associativismo democrático, o caráter não comercial e suas ambições, que nada exprime melhor que o lema do Cinema do Povo: "Divertir, instruir, emancipar."
Essas mesmíssimas características fazem do cineclubismo um incômodo, senão um inimigo da sociedade e economia estabelecidas. Contrariando a iniciativa individual em prol do associativismo e do comunitário, o cineclube perturba a chamada iniciativa privada, o empreendedorismo triunfante de nossos dias, enfim, o comércio, o próprio capitalismo. Pois esse coletivismo do cineclube se completa justamente pela negação do lucro como objetivo. Dessas duas bases em que se assenta o projeto cineclubista resulta, em momentos e contextos diversos, um compromisso com o livre acesso ao audiovisual e à cultura, com a livre expressão da visão das maiorias embebidas na completa diversidade de todas as comunidades, de todos os cantos do mundo. Isso contraria o cinema de vocação hegemônica e dominadora, os valores impostos, a linguagem única, a economia de ocupação e de alienação.
Estes 100 anos foram um centenário de perseguições, proibições e tentativas de cooptação. Desde o primeiro cineclube até hoje, sem descanso e sem exceção, os cineclubes foram proibidos, combatidos — até hoje gente é presa, torturada e morta em decorrência de atividades cineclubistas — ou obliterados por medidas e táticas de mimetismo e neutralização. Da Empresa à Igreja, até cineclubes fascistas se tentou criar!
Hoje o momento é especial porque o avanço da ciência e das tecnologias permite — e não é nada fora de propósito comparar este momento com o do surgimento do cinema e formação do público moderno, quando também o mundo passou por mudanças marcantes e marcadas pelo desenvolvimento tecnológico — vislumbrar uma possibilidade inédita de democratização do acesso não apenas aos produtos audiovisuais, mas principalmente aos meios de produção do audiovisual. E o cineclube pode ser o grande instrumento, a instituição mesmo que sirva de base para a organização do público em cada comunidade, em cada canto do mundo — ao mesmo tempo que em todo o mundo, pelo espaço virtual. Cineclube de um novo público, não mais de consumidores inermes, de consumidores controlados, de espectadores contemplativos, mas de participantes, sujeitos de sua cultura e de sua história.
Mas esses mesmos meios também podem significar um nível inaudito de controle, como o Grande Irmão do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, que tudo vê, tudo sabe, tudo controla. As ironicamente chamadas redes sociais já são também modos de captação e comercialização da própria subjetividade dos participantes, constituindo-se como uma nova forma da velha mais-valia marxiana: os que não têm os meios de produção não apenas estão condenados a vender sua força de trabalho, mas a ver apropriada a sua subjetividade, transformada em produto e valor. E os cineclubes, nesse ritmo, sofrem o assédio da ideologia individualista, do empreendorismo, do onguismo e, muitos, tornam-se pequenos empreendimentos especializados em que se oferece um serviço, uma mercadoria — filmes — e onde o público não participa, não manda, mas é remetido novamente à condição de plateia, de espectador.
Este centenário é motivo de festa, de comemoração, pela incrível conquista de manter essa luz que o público irradia para projetar o seu cinema, o seu audiovisual: o cinema do povo, de todo o povo. Ou, em outra palavra: do público. Mas é também, como sempre, como ininterruptamente, como é a sina desse mesmo povo-público, ocasião de luta, pois se tanta coisa mudou nestes cem anos, a situação desse povo continua bastante igual. Tanto que ressoa forte como nunca o lema do Cinema do Povo: Divertir! Instruir! EMANCIPAR!

São Paulo, 1º de janeiro de 2013
Felipe Macedo



[1] Burch. Noël. 2007. De la beauté des latrines: Pour réhabiliter le sens au cinema et ailleurs. Paris: L’Harmattan. Sem edição em português.
[2] Jullier, Laurent e Leveratto, Jean-Marc. 2010. Cinéphiles et cinéphilies : Une histoire de la qualité cinématographique. Paris: Armand Colin. Sem edição em português.
[3] Kracauer, Siegfried. [1926] 1987. "Cult of Distraction". New German Critique, vol. 40, inverno, p. 92.
[4] Em 1912, a revista Vozes de Petrópolis já cita salas católicas em Petrópolis, Belo Horizonte e Recife. (Vozes de Petrópolis, julho a dezembro, p. 1259-1261, citado por Almeida, 2011, p. 319).
[5] Figueira, Cristina Aparecidas Reis. 2003. O cinema do povo: um projeto da educação anarquista — 1901-1921. Dissertação de mestrado apresentada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
[6] Macedo, Felipe. 2010. Cinema do Povo, o primeiro cineclube, acessível em www.felipemacedocineclubes.blogspot.com.

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