2013
— Centenário do Cineclubismo
"Divertir,
Instruir, Emancipar"
Uma
tradição elitista
Até
bem recentemente se costumava localizar o início da história do cineclubismo nos
anos 20, mais precisamente em 1920 mesmo, com o surgimento das sessões do Journal
du Ciné-club, organizadas por Louis Delluc e, quase simultaneamente, com a fundação
do CASA, Clube dos Amigos da Sétima Arte, de Riciotto Canudo, ambos em Paris.
Os
trabalhos de autores como Fabio Masala, Filippo de Sanctis e eu mesmo, nos anos
70, colocando o público no centro da questão cineclubista, lançaram as primeiras
dúvidas que viriam a abalar essa historiografia. Textos dos Estudos Culturais
ingleses, especialmente de Raymond Williams, baseados na teoria da hegemonia de
Antonio Gramsci, mostraram também o processo ideológico de apropriação conceitual
que ocorre com idéias e práticas originalmente populares. Noel Burch, com seu Da
beleza das latrinas,[1] e mais recentemente ainda
uma crítica da cinefilia elitista — Cinéfilos e cinefilias —[2] trouxeram especificamente
para o campo do cinema e do cineclubismo um esclarecimento mais definitivo de como
nossa história foi apropriada durante décadas por uma concepção elitista que só
consegue ver cultura e criação onde for capaz de reconhecer uma personalidade especial,
um autor. Ou mais, onde essa autoria se exprime de forma tradicionalmente culta,
isto é, literária, especializada, e avalizada pelo ambiente artístico e cultivado
do momento e/ou de uma posteridade igualmente "informada".
Durante
muito tempo o cineclubismo foi identificado — muitas vezes de forma automática,
acrítica — com uma concepção de cineclube de elite, animado por connaisseurs,
liderados por (e reconhecidos através de) uma grande personalidade, e capazes de
produzir uma leitura — na verdade, uma escritura — crítica expressa em termos considerados
cultos para o contexto em que se inseriam ou para a avaliação posterior igualmente
elitista. Dessa forma, práticas já consolidadas nos meios mais populares só foram
reconhecidas quando se associaram a figuras como Delluc ou Canudo, caciques dos
salões parisienses de sua época. Principalmente interessado em fidelizar o público
leitor de suas revistas — Journal du Ciné-club, depois Cinéa — Delluc
promovia sessões de gala com filmes e conferências, repaginando — como se diz hoje
em dia — para as elites da capital francesa atividades que os clubes populares já
praticavam há um bom tempo. Canudo promovia memoráveis ceias elegantes para debater
e valorizar o cinema como arte.
Certamente
essas atividades mais chiques também se inscrevem no grande plano geral do cineclubismo;
as bem conhecidas personalidades do meio artístico de Paris contribuíram, e muito,
para o reconhecimento e a disseminação dos clubes de cinema não apenas naquela cidade,
mas também nas grandes capitais de todo o mundo, inclusive na América Latina. Mas
não constituem as primeiras experiências cineclubistas, não fundam a história deste
nosso movimento. Os anos vinte, tal como se dera um pouco antes com o próprio fenômeno
cinematográfico, podem ser considerados como o momento de institucionalização
do cineclubismo, quando os elementos de um certo protocolo cinéfilo (Gauthier,
1999) se consolidam justamente numa concepção "culta" e elitista de cineclube.
História
do cineclubismo
O
mito do cineclube exclusivo do cinéfilo e/ou fanático, contudo, tomou raízes e se
propagou por todo o mundo. Quando, 50 anos depois, os primeiros textos avançaram
a tese do cineclubismo como organização do público, mal sabiam seus autores que
apenas retomavam o projeto que dera origem às primeiras práticas cineclubes e que
orientou os primeiros cineclubes. Não existia ainda uma pesquisa histórica sistemática
sobre cineclube e organização do público, que é projeto para este século.
Em
breves traços: as origens mais distantes do cineclubismo se confundem com outras
formas de organização popular: iniciativas autônomas de ajuda mútua, educação, diversão
e organização política. De fato, sindicatos, partidos políticos, cineclubes e um
sem-número de associações populares têm todos uma origem comum. E também, em grande
medida, o espetáculo moderno, que se moldou nessas formas de associação. A conjunção
e evolução dessas formas é tema para outros textos mas, simplificando, lembramos
que ao longo do século XIX constituíram-se nos meios populares diversos tipos de
clubes, voltados simultaneamente para a diversão, o desenvolvimento cultural,
a ajuda mútua e a organização política. Neles, frequentemente em torno de uma boa
cerveja, os associados, a comunidade, cantava, declamava, debatia, estudava e conspirava
pela sua emancipação. Numa outra vertente, igrejas e reformadores morais de todo
tipo também empregavam esse recurso para "formar" ou educar para um certo
tipo de cidadania. Nas conferências e debates que se promovia nessas organizações
utilizavam-se bastante as lanternas mágicas como elemento de ilustração. Com o surgimento
do cinematógrafo, ele foi rapidamente incorporado a essas práticas: existem manifestações
documentadas, animadas com projeções, pelo menos desde 1898.
Mas
é com a institucionalização do cinema — tal como a compreende a historiografia
contemporânea –, processo que se inicia com a proliferação das salas fixas a partir
de 1905, que irá emergir a forma cineclube, como instrumento de resistência ao modelo
de cinema opressor que se desenvolvia. O processo ocorre em todo o mundo, mas talvez
de forma mais evidente nos EUA, onde se pode ver mais claramente a relação que se
estabelece entre um cinema que vai se definindo como negócio e um novo tipo de público
que se forma, mediados por uma linguagem que gradualmente se consolida.
O
formato nickelodeon — salas que apresentavam programas sucessivos a preços
populares –, surgido no final de 1905, logo se implanta aos milhares. Em 1910, um
terço da população estadunidense ia ao cinema uma vez por semana (em 1920, a metade
do país); esse público em formação incorporava a mulher e a criança que, na era
moderna, partilhavam pela primeira vez o espaço público. Inicialmente visto
como vulgar e mesmo perigoso (o ambiente escuro e promíscuo das salas localizadas,
em sua maioria, em áreas proletárias) pelos segmentos sociais mais abastados, a
massa de cinéfilos era constituída basicamente pela classe operária e pelos enormes
contingentes de imigrantes que a vinham ampliar, nesse período de intensa industrialização.
O ambiente era animado, muitos se conheciam — muitas das salas ficavam nos bairros
mesmo desse público que é o avô do nosso moderno proletariado audiovisual —, ou
pelo menos se identificavam, se reconheciam como comunidade, como classe. Todo mundo
falava, comentava, cantavam juntos em certas passagens, acompanhados pelo menos
por um pianista; frequentemente um narrador ou explicador apresentava
ou acompanhava toda a história dos filmezinhos de poucos minutos que compunham um
programa também bastante breve. Os temas de sucesso eram populares, tirados da experiência
de vida e hábitos culturais daquele público e que lhe podiam interessar. Mas nem
a produção nem as salas estavam nas mãos do público.
O
cinema que os industriais (foi o capital gerado pelo sucesso da exibição popular
que permitiu o estabelecimento dos grandes estúdios e a monopolização mundial da
produção e da distribuição) queriam construir não era o mesmo que interessava àquela
grande massa popular. O tratamento dos enredos populares era dado a partir do ponto
de vista de outra classe social. E o espaço público dos cinemas foi, inicialmente
e durante cerca de dez anos, um terreno de conflito, um campo de ferrenha luta de
classes. O público se revoltava quando uma greve, por exemplo, feita ali na sua
cidade mesmo, era mostrada como uma perfídia de criminosos. Ou quando um personagem
de imigrante era tratado como estúpido ou mau caráter. Ria dos poderosos apresentados
como generosos e paternais. Comentava, vaiava, assobiava. Saía da sala e às vezes
até quebrava umas instalações. Não estava distante perceber que tinha que ter suas
próprias salas para ter "seu" cinema.
Do
outro lado, o capital tomava medidas para controlar essa massa: surgem as primeiras
formas de censura, moral e política; um corpo policial é criado nas salas para conter
o público — os ushers são os primeiros "lanterninhas", cuja verdadeira
origem é essa, de repressão. Deslocam-se as salas para regiões das cidades de menor
concentração operária ou imigrante e o ingresso é gradualmente aumentado, procurando
atrair setores da classe média.
Muito
simplificadamente, ao final desse longo enfrentamento resulta a formação do que
Siegfried Kracauer[3] chamou de público cosmopolita: uma massa sem identidade, silente,
controlada e domesticada sob as regras do negócio, objeto — e não sujeito — de um
cinema que se quer apenas entretenimento, com uma linguagem linear, literária, transparente
e censurada. Um público consumidor. Formado por espectadores.
Mas
havia outra vertente: um público que se organizava. Vendo que cada vez mais o cinema
se distanciava de seus interesses, de seus gostos, de sua cultura mesmo, diversos
grupos tomaram variadas iniciativas. Alugavam-se salas para garantir a exibição
de certos filmes boicotados pelo comércio; Steve Ross (1999) aponta produções de
grupos sindicais e políticos desde 1908. Tanto na França como nos EUA há referências
a atividades sistemáticas de exibição no final da primeira década do século XX.
Em boa parte da Europa — como também no Brasil — a igreja católica estimula ou promove
diretamente práticas com cinema dissociadas do comércio capitalista, visto por ela
como tão nocivo como o socialismo, seu maior inimigo. Na América do Norte esse papel
era desempenhado pelas denominações protestantes. A existência de uma rede não comercial
de exibições desde o final da primeira década parece ser comprovada pela criação
de uma distribuidora de filmes, em 1912, pela organização patronal YMCA (Associação
Cristã de Moços): iniciativa voltada tanto para alimentar um circuito cristão como
para se contrapor à poderosa influência anarquista, socialista e feminista nos meios
sindicais e populares. Em 1911, o jornal L.A. Citizen traz uma breve entrevista
com um dos dirigentes de um "cinema socialista", que diz textualmente:
"nossa sala é o resultado da rebelião do público contra o que lhe é imposto".
No
Brasil, ainda que as pesquisas sejam relativamente poucas, o mesmo caldo de cultura
está presente: organizações, jornais, clubes, círculos, ateneus anarquistas e grupos
socialistas existem em grande número desde o final do século XIX. As escolas
modernas, inspiradas nas teorias do educador anarquista catalão Francisco Ferrer
(fuzilado em 1909), espalham-se por vários estados, empregando diversos recursos
para ilustrar seus cursos — mas há ainda que se demonstrar o uso do cinema nessas
práticas. Também os católicos imitam os franceses e criam por aqui a Boa Imprensa,
organização que defende e promove o "bom cinema" e logo terá algumas salas
em diferentes estados brasileiros.[4]
O
primeiro cineclube
Se
são características dos cineclubes justamente o associativismo, o construir coletivo,
um certo anonimato — no sentido de inexistência de próceres cultuados - que em grande
medida disso decorre, tanto mais difícil é estabelecer uma periodização rigorosa,
uma data para um mítico "primeiro cineclube". Mas a História, a memória,
a identidade e mesmo a política se assentam também em datas e símbolos que ajudam
a construir um patrimônio coletivo a ser compartilhado. Assim, mesmo correndo o
risco — de resto benfazejo — de que se comprovem outras iniciativas, parece que
a primeira organização do público estruturada como um cineclube (associação democrática
sem fins lucrativos e com o projeto de, através do cinema, garantir ao público acesso
e participação na construção de um cinema que o representasse) e devidamente comprovada
documentalmente é o Cinema do Povo, cooperativa de inspiração anarquista criada
em Paris em 1913.
O
programa do cineclube foi publicado no jornal Libertaire de 13 de setembro
de 1913, e os estatutos da entidade registrados em cartório em 28 de outubro do
mesmo ano. Entre os objetivos definidos estatutariamente estavam: "produção,
reprodução, venda e locação de filmes", bem como "propaganda e educação
através de apresentações artísticas teatrais, conferências, etc." Mais adiante,
os estatutos precisavam: "A sociedade se esforçará para elevar a intelectualidade
do povo." Os cartazes dos filmes produzidos e apresentados pelo cineclube nos
meses seguintes traziam uma espécie de mote ou lema que resume brilhantemente esse
ambicioso programa e que guarda total atualidade depois de cem anos, podendo muito
bem servir de orientação para os cineclubes contemporâneos: "Divertir, instruir,
emancipar."
Outro
aspecto que valoriza esse primeiro cineclube é a repercussão que a iniciativa alcançou
em várias partes do mundo. Ao que parece, outros cinemas do povo foram criados.
No Brasil, a notícia chegou através do militante português Neno Vasco que, expulso
daqui pela polícia, escrevia de Portugal para o jornal A Lanterna, de São
Paulo, relatando as atividades do cineclube libertário parisiense. Em seu número
de 8 de maio de 1914, A Lanterna publicou uma convocação para uma reunião
no salão da Lega della Democrazia, na Rua Bonifácio 39, 12º andar, com o objetivo
de fundar "uma sociedade cujo objetivo será a propaganda social através do
cinematógrafo".[5] Não existe, no entanto, comprovação
de que tal sociedade tenha sido realmente fundada — o que poderia nos levar a comemorar
o centenário do cineclubismo brasileiro no ano que vem...
Como
muitos dos cineclubes que marcam a história do nosso movimento, o Cinema do Povo
teve curta duração: além da mobilização para a primeira Grande Guerra, o conflito
foi precedido por uma forte perseguição aos movimentos contestadores e pacifistas.
A última sessão do cineclube deve ter sido a de 30 de maio de 1914.[6]
Centenário
de cineclubismo
O
movimento cineclubista vive um momento muito especial em sua história. Tendo criado
uma forma institucional e organizativa que lhe é exclusiva, conseguiu mantê-la até
essa marca extraordinária de cem anos. Sua força — e igualmente muitas de suas fraquezas
— derivam das características que já mencionamos: o associativismo democrático,
o caráter não comercial e suas ambições, que nada exprime melhor que o lema do Cinema
do Povo: "Divertir, instruir, emancipar."
Essas
mesmíssimas características fazem do cineclubismo um incômodo, senão um inimigo
da sociedade e economia estabelecidas. Contrariando a iniciativa individual em prol
do associativismo e do comunitário, o cineclube perturba a chamada iniciativa privada,
o empreendedorismo triunfante de nossos dias, enfim, o comércio, o próprio capitalismo.
Pois esse coletivismo do cineclube se completa justamente pela negação do lucro
como objetivo. Dessas duas bases em que se assenta o projeto cineclubista resulta,
em momentos e contextos diversos, um compromisso com o livre acesso ao audiovisual
e à cultura, com a livre expressão da visão das maiorias embebidas na completa diversidade
de todas as comunidades, de todos os cantos do mundo. Isso contraria o cinema de
vocação hegemônica e dominadora, os valores impostos, a linguagem única, a economia
de ocupação e de alienação.
Estes
100 anos foram um centenário de perseguições, proibições e tentativas de cooptação.
Desde o primeiro cineclube até hoje, sem descanso e sem exceção, os cineclubes foram
proibidos, combatidos — até hoje gente é presa, torturada e morta em decorrência
de atividades cineclubistas — ou obliterados por medidas e táticas de mimetismo
e neutralização. Da Empresa à Igreja, até cineclubes fascistas se tentou criar!
Hoje
o momento é especial porque o avanço da ciência e das tecnologias permite — e não
é nada fora de propósito comparar este momento com o do surgimento do cinema e formação
do público moderno, quando também o mundo passou por mudanças marcantes e marcadas
pelo desenvolvimento tecnológico — vislumbrar uma possibilidade inédita de democratização
do acesso não apenas aos produtos audiovisuais, mas principalmente aos meios de
produção do audiovisual. E o cineclube pode ser o grande instrumento, a instituição
mesmo que sirva de base para a organização do público em cada comunidade, em cada
canto do mundo — ao mesmo tempo que em todo o mundo, pelo espaço virtual. Cineclube
de um novo público, não mais de consumidores inermes, de consumidores controlados,
de espectadores contemplativos, mas de participantes, sujeitos de sua cultura e
de sua história.
Mas
esses mesmos meios também podem significar um nível inaudito de controle, como o
Grande Irmão do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, que tudo vê, tudo
sabe, tudo controla. As ironicamente chamadas redes sociais já são também
modos de captação e comercialização da própria subjetividade dos participantes,
constituindo-se como uma nova forma da velha mais-valia marxiana: os que não têm
os meios de produção não apenas estão condenados a vender sua força de trabalho,
mas a ver apropriada a sua subjetividade, transformada em produto e valor. E os
cineclubes, nesse ritmo, sofrem o assédio da ideologia individualista, do empreendorismo,
do onguismo e, muitos, tornam-se pequenos empreendimentos especializados
em que se oferece um serviço, uma mercadoria — filmes — e onde o público não participa,
não manda, mas é remetido novamente à condição de plateia, de espectador.
Este
centenário é motivo de festa, de comemoração, pela incrível conquista de manter
essa luz que o público irradia para projetar o seu cinema, o seu audiovisual: o
cinema do povo, de todo o povo. Ou, em outra palavra: do público. Mas é também,
como sempre, como ininterruptamente, como é a sina desse mesmo povo-público, ocasião
de luta, pois se tanta coisa mudou nestes cem anos, a situação desse povo continua
bastante igual. Tanto que ressoa forte como nunca o lema do Cinema do Povo: Divertir!
Instruir! EMANCIPAR!
São
Paulo, 1º de janeiro de 2013
Felipe
Macedo
[1] Burch. Noël. 2007. De la beauté des latrines: Pour réhabiliter
le sens au cinema et ailleurs. Paris: L’Harmattan. Sem edição em português.
[2] Jullier, Laurent e Leveratto, Jean-Marc. 2010. Cinéphiles
et cinéphilies : Une histoire de la qualité cinématographique. Paris: Armand
Colin. Sem edição
em português.
[3] Kracauer,
Siegfried. [1926] 1987. "Cult of Distraction". New
German Critique, vol. 40, inverno, p. 92.
[4] Em 1912, a revista
Vozes de Petrópolis já cita salas católicas em Petrópolis, Belo Horizonte
e Recife. (Vozes de Petrópolis, julho a dezembro, p. 1259-1261, citado por
Almeida, 2011, p. 319).
[5] Figueira, Cristina
Aparecidas Reis. 2003. O cinema do povo: um projeto da educação anarquista —
1901-1921. Dissertação de mestrado apresentada na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo.
[6] Macedo, Felipe. 2010.
Cinema do Povo, o primeiro cineclube, acessível em www.felipemacedocineclubes.blogspot.com.